sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Blogonovela - episódio 3

O ponteiro dos segundos passou-se!
Começou a girar, rapidamente, no sentido contrário ao que normalmente descreve. A velocidade era tal que me estava a pôr tonto... E então não é que, no meio de todo este frenesim, o ponteiro saiu do eixo disparado e foi embater com violência na moldura do mostrador? E desapareceu de vista! Pulverizou-se!
"Mas que diabo..."- pensei - "agora como é que vou contar os BPM's como deve ser?"
Estava eu nesta estupefacção, a olhar para o relógio como um boi a olhar para um palácio, quando me lembrei que a anestesia já estava no máximo há vários minutos.
HORROR!
Auscultei rapida e atabalhoadamente e não ouvi nada. NADA!
- Morgana, vê lá se ouves o coração!!!
Desesperado, corri para a máquina, desliguei o anestésico e coloquei o oxigénio no máximo.
-Está em paragem cardio-respiratória!!! - guinchava a Morgana.
Eu já estava encharcado em suores frios. E agora? Estávamos ali sozinhos, que podíamos nós fazer?
IPPV?
CCPR?
Rezar um Pai Nosso e uma Avé Maria?
Adrenalina intra-cardíaca?
Abaná-la e chorar histericamente?

...não foi preciso fazer nada. "Já está a bater!" - ouvi eu - "Começou agora de repente."
Óptimo! Que alívio...
Nisto, entra o "Anjo na Terra"...

...e acordei!



comentário: Sim, é verdade, como toda a gente calculava isto foi tudo um sonho, porque não há anestesista mais competente que eu, como é óbvio!

Ah, e afinal o sonho não deu uma novela, deu só uma mini-série...

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Blogonovela - episódio 2

Enquanto o Dr. Puxa-as-Patas-dos-Bichos (PPB) esgravatava as entranhas da Princesinha "ferroviária", eu contava os CCP's e os BPM's, mas como não me estava a apetecer usar o estetoscópio, apenas tinha a mão colocada sobre o esterno para poder sentir o choque pré-cordial e, dessa forma, saber que a miúda continuava viva. E nem me dei ao trabalho de olhar para o relógio e contar os segundos.
Estava-se mesmo a ver que, com tanto desleixo, a coisa ia dar asneira... E deu mesmo!
Não me apercebi a tempo que a cadela estava a superficializar da anestesia e só quando a pobrezinha acordou aos safanões e se tentou levantar da mesa de cirurgia, com as tripas todas de fora, nas mãos do Dr. PPB, é que gritei:
- Morgana, mete o anestésico em 5!!! (cinco é o nível máximo a que se pode colocar a anestesia)
Ora, com o anestésico volátil a ser bombeado a grande velocidade para o interior dos pulmões, a Princesa lá se acalmou e voltou a perder a consciência.
"Ufa! Agora já vou fazer a monitorização como deve ser", pensei eu...
Armado com o estetoscópio e com o relógio, contava alegremente os batimentos cardíacos durante 15 segundos, e repetia este procedimento de 5 em 5 minutos. Agora nada poderia falhar!
Estava nisto quando, de súbito, o ponteiro dos segundos se começou a comportar de uma forma estranha...

CONTINUA

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Blogonovela - episódio 1

Certo dia recebemos a visita da Princesa dos Comboios.
Tinha o braço partido, ou melhor, uma fractura no úmero direito. E porquê?

Atirou-se de um comboio!

A resolução era cirúrgica, através da colocação de agulhas intra-medulares, o que basicamente consiste em pegar num berbequim e enfiar umas varas de aço ponteagudas pelo osso adentro.
Chegado o dia da cirurgia, o Quem Nós Sabemos declarou que nós, os estagiários, podíamos levar a doente para a cave (cuja existência eu desconhecia até então) e fazer-lhe uma laparotomia exploratória para irmos treinando qualquer coisa até ele aparecer para fazer a osteossíntese do úmero.
É claro que ficámos entusiasmados por irmos abrir a barriga à cadela e brincar um bocadinho com o conteúdo, em nome do interesse académico, mas ao mesmo tempo estávamos assustados, pois seria a primeira vez que íamos fazer as coisas sozinhos, sem supervisão.

Mal sabíamos o que estava prestes a acontecer...

Uma vez na cave, definimos as funções que cada um iria desempenhar na cirurgia (ou devo dizer brincadeira?). Eu fiquei como anestesista, o Dr. Puxa-as-Patas-dos-Bichos ficou como cirurgião e a Dra. Morgana ficou como circulante...

CONTINUA

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Desintoxicação

Desde o início do nosso estágio que permanece inalterado um elemento que, apesar de não ter sido notado nos primeiros tempos, foi-se tornando um hábito insuportável. Não me refiro aos calafrios que sentimos na espinha sempre que esguichamos metade do conteúdo das seringas à frente do Cujo-Nome-Não-Pode-Ser-Pronunciado, antes mesmo de o injectarmos nos animais; ou na tremideira que toma de assalto as nossas mãos (qual sismo de 7,0 na escala de Richter provocado por epicentro no cirurgião mais perto de nós) quando somos pressionados por um treinador velocista a suturar os 100 metros barreiras e, no fundo, no lugar de pés, temos um par de barbatanas desengonçadas que se enrolam uma na outra mal damos três passos em chão de areias movediças. Refiro-me sim, à constante, enfadonha, detestável, infernal, odiosa RFM. Já não há paciência para ouvir as mesmas 10 músicas ao longo do dia todo. Até parece que o panorama musical (nacional e internacional) se resume àquelas 10 musiquetas de cortar pulsos e de espetar bisturis nas tripas dos mais incautos.

Meu Deus! O André Sardet que vá daqui à Lua mas que fique por lá e não volte, e no caso de ele voltar, tenho aqui uma biqueira com turbinas espaciais capaz de o lançar a Mach 5 para o sítio de onde ele veio. A Ana Free(gida) que arranje gajo em vez de passar o dia todo fechada no quarto a fazer músicas e a azucrinar a cabeça dos vizinhos e dos ouvintes das rádios portuguesas. E a Brandi Carlile, se quer cantar as histórias dela às pessoas, que vá para o Bairro da Quinta da Fonte e as cante à beira de uma fogueira rodeada pelos ciganos que lá moram. Com sorte, sairia de lá apenas com duas ou três facadas no bucho e ainda ganharia uma voz completamente diferente. Ok, de cada vez que cantasse cuspiria umas gotinhas de sangue, mas seria uma novidade total. Nunca ninguém teria escutado a voz vinda de uma pessoa com as cordas vocais estilhaçadas por uma naifa comprada na feira de Carcavelos.

Já tentámos fazer o desmame da rádio mas o grau de viciação é de tal ordem que ainda não encontrámos uma combinação de rádios suficientemente forte para enganar os doutores que lá trabalham. Tentámos o efeito sinérgico de uma MegaFM com os ritmos brasileiros e uma kizombada da Capital mas sem resultados aparentes. Continuaremos a tentar a desintoxicação, mas esta avizinha-se difícil.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Sobre a melhor bata, cai a nódoa

Uma destas tardes enquanto estava na cirurgia na condição de circulante (em que, basicamente, as minhas tarefas são as de um Ambrósio que em vez de bombons, leva pinças hemostáticas, adrenalinas, ou de vez em quando, ensopa com soro as entranhas animalescas sob ordens a 500 decibéis), compenetrado nos afazeres dos cirurgiões, gravava para a posteridade as calinadas dos meus colegas. De repente, surge de dentro do abdómen escavacado da bichana, uma estrutura desconhecida, pouco menor que uma bola de bowling, a fitar-me nos olhos. Tentei evitá-la, mas o raio da bola amarela, tapada de veias e artérias túrgidas, fazia questão em manter as hostilidades. Aproximei-me e só aí reparei o que estava à minha frente. Tarde demais! Sem mais nem menos uma bexiga mutante do tamanho de um melão e de olhar enraivecido, espreme-se e contrai-se zangada por aqueles dois panascas de bisturi na mão e sorrisos camuflados pelas máscara, a estarem a apertar. “Vá Dr. Pernil, apanhe a urina da bicha!”. Pois apanhei. 100 ml na tigela e litro e meio com a bata, roupa e sapatos. Retirei-me da sala de cirurgia encharcado e a pingar pelo chão os restos daquele geiser amoniacal sob pressão.

Aspecto positivo: a minha bata que antes estava marcada por várias nódoas, riscos, manchas e ponteados multi-colores, dando um mau aspecto aos clientes da clínica, ganhou uma cor mais homogénea mas ligeiramente amarelada. Agora os donos já têm mais dificuldade em visualizar as nódoas….contudo, acabam por ficar desconfiados quando os seus cãezinhos acham que ainda há zonas brancas na minha bata que deveriam concordar com o tom bege do restante tecido, e assim, contribuem para tal.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Resumo da semana

Esqueçam tudo o que eu disse sobre o hediondo 2º mês de estágio...
E porquê?
Porque a realidade é pior. Muito pior!
Não só o grau de exigência subiu vertiginosamente (ao ponto de dar arrepios na barriga e deixar um nó no estômago), como a comunidade animal decidiu bombardear-nos com sucessivos ataques de cães mortos-vivos e gatos kamikaze!
Senão vejamos o que aconteceu nos últimos 8 dias:

2ª-feira - Urgência ao final da manhã: Pastor Alemão com o estômago todo torcido. O que é que isto significa? Cirurgia à hora de almoço. Telepizza pós-cirúrgica.
Trabalho non-stop de manhã à noite, nem 5 minutos de cú sentado.

3ª-feira - Dra. GPL traz sandes de presunto para os estagiários!
Nem um segundo de descanso o dia todo; 10 horas sem qualquer paragem.
Sandes, nem cheirá-las!

4ª-feira - Urgência: gatinho mais para lá do que para cá... suspeita de panleucopénia felina. Estabilizámo-lo. A meio da tarde não resistiu e entrou em paragem cardio-respiratória. Foi-se! Sandes de presunto duras ao lanche.

5ª-feira - Gata muito prostrada e desidratada, a fazer soro desde manhã, entrou em paragem cárdio-respiratória. Foi-se!

6ª-feira - Dia non-stop, com direito a bêbados a entrar pelo consultório adentro...

Sábado - hora de entrada: 8:30h! Razão? Hemilaminectomia com mielografia pré-cirúrgica. Ou, trocando por miúdos, espetar uma agulha no pescoço, injectar uma papa pela medula abaixo, tirar radiografias e a seguir dar uma naifada nas costas e esgravatar os ossos até encontrar um disco intervertebral saltitão.
De tarde, Cocker vivaço partiu pela 2ª vez (!) fixador externo e agulhas intra-ósseas, no cotovelo. Agulhas retiradas do osso, estimulação excessiva do nervo vago, bradicárdia e hipotensão, cão vai-se abaixo e fica a uma unha negra de dar a alma ao criador se não fosse a nossa pronta intervenção. Safou-se!

Domingo - o dia mais curto da semana.

Hoje - Urgência de manhã: cadela Pequinês atacada por Boxer minutos depois de dar à luz, aparece com um olho pendurado e fora da órbita.
Urgência à hora de almoço: gato prostrado, hipoglicémico e hipotérmico. Foi feita a estabilização. À tarde entrou em agonia e... Foi-se! A hora de almoço também se foi... Telepizza!
Urgência à tarde: entrada de rompante de uma cadela a espumar da boca e em convulsões! Diazepam e acepromazina e lá foi ela para o país dos cogumelos, mais calminha e relaxada.

E pronto, a semana que terminou foi de doidos, mas esta que se inicia vai ser de doidos... com a medicação por fazer!

sábado, 4 de outubro de 2008

Santinhos, galinhas e vinho

Hoje foi o Dia Mundial dos Animais.
Foi também o Dia de São Francisco de Assis, o santo protector de todos os animais.
E, desta vez não há dúvidas, fontes fidedignas asseguram que foi também o Dia do Médico Veterinário em Portugal.
Mas este dia não se fica por aqui! Curiosamente, é também o Dia do Barman e o dia em que se realizava antigamente o Festival de Baco, deus romano do vinho...
Portanto, tudo encaixa e faz sentido! 4 de Outubro é o dia dos bichinhos, que precisam do seu santinho protector para não ficarem doentes, mas quando este falha estão cá os doutores para lhes valer, os quais são (ou foram, durante os 5 anos do curso) uns grandes bêbados que arrumam forte e feio na vinhaça e na sangria, os quais são vertidos nos barris pelo deus Baco e servidos nos copos pelos barmans.
Resumindo e concluindo, este dia comemora tudo o que serve para fazer os veterinários felizes: criaturas para escarafunchar e uma boa pinga para emborcar!

E como estamos numa data festiva, vou contar uma história que ouvimos da boca de alguém que tem mais uns aninhos disto que nós: a simpática Dra. X
"Certo dia aparece na clínica uma senhora, cliente habitual, acompanhada por uma vizinha sua amiga. A vizinha, com ar solene, pousa em cima da marquesa um saco de plástico que exala um cheiro nauseabundo. Segundo ela, o conteúdo do saco é... a Cassilda! Depois de aberto, o saco revela uma galinha morta e em decomposição, com larvas a sair por todos os poros.
- Sabe, doutora, a Cassilda apareceu morta de uma forma muito estranha. Fui encontrá-la no galinheiro pendurada de pernas para o ar e desconfio que o meu marido tenha abusado dela! A doutora não pode fazer um exame aí ao rabinho p'ra ver se ela não foi violada?"

Moral da história: ou os veterinários não são os únicos a abusar da pomadinha de Baco, ou as galinhas não constam da lista de S. Francisco!

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

É só p'ra dizer que voltei

Sim, voltei.
Não adianta perguntar para onde fui e o que é que fiz. Isto é um blogue sobre o quotidiano mas não é a "Maria" (é por essa razão que também não respondo às dezenas de e-mails que nos chegam com perguntas do género: "-Beijar-lhe e acariciar-lhe os seios pode causar o cancro da mama?"; "-Quando beijo a minha namorada fico cheio de borbulhas na cara. Serei alérgico às raparigas?"; "-Existem clínicas para curar os homossexuais?"; "-Fiz sexo com uma almofada e o período faltou-me no mês seguinte. Posso estar grávida?")!
O que é certo é que foram 4 dias de levantar tarde, não fazer nada durante o dia e sair à noite até me apetecer.
Um luxo!
Agora, de regresso à 5ª dimensão, dou por mim caído de pára-quedas em pleno 2º mês de estágio! O mês da besta. O mês em que a brincadeira acaba de vez. O mês em que a Dra. X nos abandona e deixa à mercê do bicho mau. O mês em que o papão vai finalmente tirar a máscara de bonzinho. O mês em que aquela efémera boa disposição e humor sarcástico vão desaparecer e dar lugar a gritos, tortura e humilhação. Possivelmente, o último mês de estágio... Provavelmente, o último mês das nossas vidas...

Desabafos cirúrgicos

Os meus companheiros de estágio teimam em continuar a castrar as fontes de líbido do cão alheio. É que não perdoam uma oportunidade! E se há homenagem que deva ser feita, é ao líbido. Tiro o meu chapéu a esse grande amigo do género masculino que lhe dá forças para se levantar todas as manhãs e passar um dia inteiro a comer e a dormitar, a petiscar ou a beber, e de vez em quando a lamber as partes fálicas (refiro-me obviamente à espécie canina). Pobres cães. Dá-me pena vê-los a acordar da anestesia e a terem como primeiro pensamento “Aaaai, tenho qu’ir à Bersh’canin comprar aquela trêla rôsa que vi láá” ou “A p*** daquela cadela Boxer anda-me sempre de rabo alçado pr’o Labradoree, e ainda por cima ‘tá gorda que nem uma balêa e tem as unhas mal arrãnjadas”. É bonito ver um Pitbull a espumar da boca com vontade de abocanhar uma qualquer pernoca de um qualquer estagiário que passe mais ao pé. Nos tempos que correm, basta uma maldita orquiectomia para transformar este brutamontes numa Lassie sedenta de festinhas e palmadinhas no rabo.

Já eu, dedico-me a artes cirúrgicas mais finas. Faz agora uma semana, apareceu lá no consultório uma cadelinha, de nome fictício ‘Ermelinda’, muito triste e desiludida com um infortúnio da vida. Em vez dos usuais pedidos para aumentar o volume dos seios ou a grossura dos lábios, a Ermelinda, nas suas próprias palavras, achava que “havia alguma coisa de errado com a sua patareca”. E havia mesmo. No lugar da “patareca”, a Ermelinda tinha um hamartoma vascular. Trocando por miúdos, tinha uma meloa de 700g e 10cm de comprimento em vez de uma banal vulva. Não quis transparecer o meu choque, mas o certo é que já tinha visto cães mais pequenos que aquele calhau. No final, tudo correu bem. A Ermelinda retirou a massa e fez uma vulvoplastia. Modéstia à parte, ficou ali um trabalho de mestre. Bonita, firme e com o tamanho apropriado para desempenhar as suas funções.